Não sou um especialista nas ciências jurídicas, mas não sou tão tapado a ponto de não enxergar o óbvio.
Nesta postagem vamos separar as tripas da tal presunção de inocência prevista no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
Lá diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Esse “trânsito em julgado de sentença penal condenatória” é a tripa grossa da tal presunção de inocência, e quer dizer “Quando não há mais possibilidade de recurso”.
Essa “possibilidade de recurso” é ad eterna na justiça do Brasil. E associada a demora para o julgamento e os arquitetados pedidos de vista perde o objeto. Como no Judiciário brasileiro há vários encaixes para recursos, quem tiver dinheiro para pagar bons advogados, dará nó judiciário por anos a fio. O criminoso chaga a morrer de velhice.
No sistema judiciário brasileiro há duas situações que devem ficar claras em termos práticos. O trânsito em julgado e a coisa julgada. Duas tripas que estão entrelaçadas.
A coisa julgada, segundo o ministro do STJ, Marco Aurélio Bellizze, “é a qualidade da decisão que a torna imutável, não sendo mais possível discutir seus comandos, senão por meio de revisão criminal, e se preenchidos os requisitos do artigo 621 do Código de Processo Penal”.
Ora! Se o crime estar provado de cabo a rabo (completamente), que estória é essa de presunção de inocência?
Aliás, por aqui, o criminoso é réu confesso, tudo provado, está cumprindo pena e todos o trata como suspeito. Chega a ser ridículo.
Os ministros do STF resolveram acordar para a realidade e dar um basta na impunidade velada.
POSICIONAMENTO DO
STF
Em maio do
corrente ano de 2016, foi publicado acórdão do plenário do Supremo Tribunal
Federal, no julgamento do HC 126292 modificando substancialmente o entendimento
anterior, sendo assim ementado:
CONSTITUCIONAL.
HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA
POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE.
1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de
apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não
compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo
artigo 5º,
inciso LVII da Constituição Federal. (BRASIL, 2016).
O julgamento não
foi unânime, sendo vencidos 4 ministros, e os ministros que votaram pela
modificação do entendimento manifestaram-se conforme fundamentos diversos, para
permitir a execução provisória da pena. Nesse sentido, é de suma importância
conhecer os principais fundamentos apresentados no julgamento.
O relator do
julgamento, Ministro Teori Zavascki, proferiu o voto no sentido da modificação
do entendimento anterior.
Manifestou-se no
sentido de que o princípio da presunção de inocência tem natureza preponderante
de norma de tratamento, principalmente no que diz respeito ao aspecto
processual. Nesse sentido, institui o ônus da prova da acusação. A vedação
decorrente do princípio seria a de impor ao acusado a prova de sua inocência.
Por essa razão, concluído o julgamento em segundo grau, quando então se encerra
a discussão acerca de fatos e provas, não haveria justificativa para
manutenção, enquanto pendente o julgamento de recursos perante o STJ e STF, das
limitações impostas pelo princípio da presunção de inocência.
Em seu voto, fez
menção a entendimento da Ministra Ellen Gracie:
O domínio mais
expressivo de incidência do princípio da não culpabilidade é o da disciplina
jurídica da prova. O acusado deve, necessariamente, ser considerado inocente
durante a instrução criminal – mesmo que seja réu confesso de delito praticado
perante as câmeras de TV e presenciado por todo o país. (BRASIL, 2016).
O Ministro ainda
destacou que em nenhum outro país do mundo, depois de observado o duplo grau de
jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da
Corte Suprema, e reproduziu interessante estudo de Luiza Cristina Fonseca
Frisceisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman sobre a aplicação ao redor do
globo.
Informou que na
Inglaterra seria regra geral que, até o julgamento dos recursos, o réu
aguardasse preso, ressalvados os casos de liberdade por fiança;
Nos Estados
Unidos, a Constituição não conteria, segundo
relata, previsão expressa do princípio da presunção de inocência na Constituição. Mas há lei determinando que se
presume inocente o acusado, até que o oposto seja estabelecido em um veredicto
efetivo, o qual se obteria com o equivalente a julgamento em primeiro grau.
No Canadá, após a
sentença condenatória de primeiro grau, logo se passaria à execução da pena,
salvo nos casos em que cabível fiança.
No Direito
Alemão, apenas alguns recursos teriam efeito suspensivo, mas não nos casos de
recursos a tribunais superiores. Eficácia seria característica da sentença que
não permite mais controle judicial, salvo por recursos especiais.
Em Portugal,
embora seja previsto constitucionalmente o princípio da presunção de inocência,
com expressa menção ao trânsito em julgado, este não seria interpretado e
aplicado de forma absoluta.
Por fim, ensina
que na Espanha, o princípio da efetividade das decisões judiciais prevalece
sobre a presunção de inocência.
O Ministro
relator critica o sistema normativo atual, afirmando que desprestigia a decisão
judicial. Diante desse cenário, caberia ao Poder Judiciário e, sobretudo ao
STF, resgatar sua função institucional.
Analisando as
colocações do ministro, diante do comando constitucional, o que se verifica é
que não há uma preocupação em identificar as consequências específicas do
reconhecimento da culpa e do conceito de trânsito em julgado. A ideia se
aproxima mais da criação de um novo conceito de presunção de inocência,
dissociado de seus parâmetros constitucionais.
O Ministro Edson
Fachin, aquiescendo ao voto do relator, afirma que ocorre atualmente um
agigantamento dos afazeres do STF e defende, expressamente, a interpretação do
art. 5º, LVII, sem apego à literalidade, sem que lhe atribua caráter absoluto.
Propõe a
interpretação em conjunto com outros princípios e normas: razoável duração do
processo, soberania dos veredictos do tribunal do júri e, principalmente, ao
arcabouço recursal constitucional que deve ser tomado como excepcional, e não
ao lado do sistema recursal ordinário.
Segundo afirma, a Constituição repeliria “o acesso às Cortes
Superiores com o singular propósito de resolver uma alegada injustiça
individual” (BRASIL, 2016) e a opção legislativa de dar eficácia à sentença
confirmada pelo tribunal confirmaria isso.
Portando, se o
Ministro Teori Zavascki passou ao longe das consequências de considerar alguém
culpado e do conceito de trânsito em julgado, o Ministro Edson Fachin propõe
expressamente o abandono do teor literal do princípio em exame.
O Ministro Luís
Roberto Barroso, também seguindo o voto do relator, apresenta fundamentação
consistente para fundamentar a necessidade de implementar, nesse caso, o
fenômeno da mutação constitucional. Nesse sentido, afirma existirem 3
fundamentos para a execução da pena após a decisão condenatória em segundo
grau, sendo enriquecedora a leitura:
I. A CF não condiciona a prisão – mas
sim a culpabilidade, ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O
pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade. Leitura
Sistemática dos incisos LVII e LXI do art. 5º da Carta de 1988.
II. A presunção
de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior
ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos
constitucionais colidentes. No caso específico (...) com o interesse
constitucional na efetividade da lei penal (CF/1988, arts. 5º,
caput e LXXVIII e 144);
III. Com o
acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação esgotam-se as
instâncias ordinárias e a execução da pena passa a constituir, em regra,
exigência de ordem pública, necessária para assegurar a credibilidade do Poder
Judiciário. (BRASIL, 2016).
Segundo Barroso,
a mudança de entendimento, ainda, coibiria a infindável interposição de
recursos protelatórios; valoriza a jurisdição criminal ordinária; torna mais
igualitário o sistema punitivo e quebra o paradigma da impunidade.
À luz da análise
inicial do presente trabalho sobre o conceito de presunção de inocência e seus
elementos, verifica-se que o Ministro mantém a ideia de trânsito em julgado,
mas insiste, conforme entendimentos outrora já manifestados, que ele não impede
a prisão, mas sim efeitos outros de se considerar alguém culpado, muito embora
não demonstre quais seriam tais efeitos.
O Ministro Luiz
Fux, também aderindo ao voto do relator, por sua vez, é expresso em seu voto:
“não há necessidade do trânsito em julgado”. Defende a singularidade da coisa
julgada no processo penal porque a decisão seria imutável em segundo grau.
Apenas excepcionalmente os tribunais superiores poderiam apreciar.
Defende que
quando uma interpretação constitucional não encontra mais ressonância no meio
social, ela fica disfuncional, o que viria ocorrendo com a interpretação da
presunção de inocência.
A Ministra Cármen
Lúcia afirma que condenação leva ao cumprimento da pena. Assim como o Ministro
Barroso, não nega que o trânsito em julgado faz surtir efeitos específicos
sobre a pessoa do condenado e, por sua vez, faz um esforço para definir quais
seriam esses efeitos. Assim, afirma que o trânsito em julgado permitirá que o
acusado seja considerado culpado. Ou seja, o carimbo da culpa, a esfera da
culpa é que dependem do trânsito em julgado, e não o cumprimento da pena.
Dentre os
ministros que votaram pela modificação do posicionamento do STF, o último a
votar foi o Ministro Gilmar Mendes, que inclusive modificou o próprio
entendimento manifestado em 2009.
Inicialmente,
exemplifica que, no direito alemão, um recurso constitucional já se lançaria
contra uma decisão transitada em julgado. Assim como o Ministro Teori Zavascki,
entende que o núcleo essencial do direito fundamental à presunção de inocência
consiste em impor o ônus da prova do crime à acusação.
Demonstra
compreensão de que haja uma omissão constitucional quanto à conceituação da
expressão culpado, afirmando que “a norma afirma que ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado da condenação, mas está longe de precisar o
que vem a ser considerar alguém culpado” (BRASIL, 2016).
Conclui que seria
natural a evolução da presunção de inocência de acordo com o estágio do
procedimento, razão pela qual o tratamento progressivamente mais gravoso seria
aceitável.
Conforme se
verifica, são diversos os entendimentos e fundamentos para a modificação do
posicionamento do STF. Entre os ministros, não se verifica qualquer dúvida
sobre o conceito de trânsito em julgado, muito embora alguns, conforme
afirmado, proponham simplesmente que a expressão seja ignorada na interpretação
do princípio em comento.
Por outro lado, o
Ministro Luís Roberto Barroso e a Ministra Cármen Lúcia buscam identificar as
consequências de ser considerado culpado, nos termos da Constituição, muito embora, aparentemente,
segundo o conceito proposto, o indivíduo, quando chegar a ser considerado
culpado, poderá já não ter mais nenhuma consequência a sofrer, além de ter
sobre si o peso da expressão, posto que todas as demais restrições de direitos
já lhe poderão ter sido aplicadas.
É interessante
também verificar os pontos fundamentais trazidos pelos Ministros que votaram
contra a modificação do entendimento do STF.
Nesse sentido, a
Ministra Rosa Weber reconhece como pertinentes as ponderações dos Ministros em
posição oposta, relativos a questões pragmáticas da aplicação absoluta da
presunção de inocência, mas vota vislumbrando um aspecto não suscitado pelos
votos anteriormente narrados: opta por prestigiar o princípio da segurança
jurídica, mantendo a jurisprudência da Casa. A Ministra critica a revisão da
jurisprudência pela só alteração dos integrantes da Corte.
Mesmo havendo
questões pragmáticas envolvidas, e por mais importantes que se revelem, entende
que a solução não passa pela alteração da compreensão do STF sobre o tema.
O Ministro Marco
Aurélio mantém o entendimento manifestado em 2009, reconhece também o problema
da delinquência, da morosidade da Justiça, bem como a vivência atual de tempos
de crise.
Enfatiza,
entretanto, que a norma constitucional que prevê o direito fundamental à
presunção de inocência não carece de interpretação, ante a clareza e precisão
do texto.
O Ministro Celso
de Mello inicia seu voto relembrando que a presunção de inocência seria uma
notável conquista histórica do povo na luta contra a opressão do Estado, sendo
importante destacar trecho de seu voto:
A consagração da
presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa –
independente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado
– há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica
essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja
prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer
efeitos, deve prevalecer até o superveniente trânsito em julgado da condenação
criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de
quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em
geral. (BRASIL, 2016).
Avançando, o
Ministro enfatiza que a expressão “até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória” foi inserida pelo constituinte conscientemente, e não em
decorrência do acaso, razão pela qual seria inadequado invocar a prática
constitucional de outros países sobre o tema. A menção ao trânsito em julgado
impediria, ainda, o esvaziamento progressivo do conteúdo do princípio, ao
decorrer das etapas do processo.
Por fim, o então
presidente do STF, Ministro Ricardo Lewandowski, também repetindo entendimento
manifestado em 2009, avalia que o comando constitucional possui taxatividade
que não se pode ultrapassar.
Destaca que o
entendimento da maioria no presente julgamento é contraditório, se comparado a
recentes outros julgados da Corte, em que se reconheceu, exemplificativamente,
a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário
brasileiro.
Ainda, evidencia
a existência de contradição, posto que as condenações ao pagamento de quantias
pecuniárias, advindas da novel regulação pelo Novo
Código de Processo Civil, tratam com mais cuidado o réu do que o
processo penal, muito embora aqui o direito seja meramente patrimonial.
Verifica-se,
portanto, por parte dos ministros que se manifestaram no sentido de que o
princípio da presunção de inocência veda a execução antecipada da sentença
condenatória, a possibilidade de aplicação literal do art. 5º, LVII da Constituição, conforme delineamentos iniciais
do presente artigo.
Todavia, o atual
entendimento é no sentido de que a execução provisória de acórdão penal
condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso
especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da
presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º,
inciso LVIIda Constituição Federal, podendo-se determinar o
recolhimento à prisão do acusado que vinha recorrendo em liberdade, pelos
inúmeros motivos apresentados, ao menos até que uma nova formação do Supremo
Tribunal Federal estabeleça uma nova mutação constitucional.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O julgado,
conforme se depreende de todos os argumentos favoráveis e contrários ao novo
entendimento, transmite uma sensação dúbia. Os votos dos ministros que
acompanharam o sentido majoritário partem de premissas irretocáveis. Os
aspectos pragmáticos referidos, a ausência de efetividade das decisões
judiciais, por conta dos incontáveis recursos, o inchaço das atribuições do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a necessidade de
fazer valer as decisões proferidas pelas instâncias ordinárias, tudo isso
parece nos conduzir à necessidade de uma modificação do sistema e aponta para a
possibilidade de cumprimento da pena imposta por tribunal de segunda instância
como uma solução possível.
Todavia, as
consequências das premissas estabelecidas nos levam a um meio duvidoso para o
alcance do resultado proposto. É necessário que indaguemos se compete mesmo ao
Supremo Tribunal Federal assumir esse papel, ultrapassando a taxatividade de
norma constitucional, visando alcançar o progresso de que a sociedade
necessita.
Nesse sentido,
vale ressaltar que, no julgado recente, o Ministro Gilmar Mendes conta que,
quando do julgamento do referido HC 84.078, o Ministro Peluso sugeriu a
propositura, por emenda constitucional, da alteração do texto constitucional, de modo a fixar um termo
relativo ao trânsito em julgado, de modo a determinar que os recursos especial
e extraordinário fossem interpostos após o trânsito em julgado, que ocorreria
uma vez julgado o feito em segundo grau.
A diversidade de
entendimentos manifestados aponta para uma ausência de conceitos uníssonos
aptos a sustentar qualquer entendimento por tempo suficiente para que se possa
falar em segurança jurídica.
Aparentemente, o
Supremo age mais uma vez na inércia do Poder Legislativo, que deveria
estabelecer mecanismos de controle do sistema recursal atual, de modo fazer
valer os demais princípios constitucionais, como a efetividade e a razoável
duração do processo, de modo a instituir um sistema sólido e duradouro, em que
o jurisdicionado não ficasse à mercê da próxima composição do STF.
Sem a pretensão
de julgar o conteúdo final da decisão como bom ou ruim, devemos analisar também
a atuação do STF, ao abandonar, expressamente, a literalidade da norma
constitucional, para, em sede de mutação constitucional, restringir direitos e
garantias fundamentais, em suposto benefício da coletividade. Afinal, como bem
afirmou o Ministro Marco Aurélio, “há de vingar o princípio da autocontenção.
Já disse, nesta bancada, que, quando avançamos, extravasamos os limites que são
próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode retornar e
vir à nossa testa”.