"Judiciário não precisa de mais juízes, e sim de gestão"


Por Marília Scriboni - SENHORA DAS PESQUISAS
Ainda nos tempos do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Luciana Gross Cunha percebeu que sua vocação estava longe das sustentações orais dos advogados e próxima da pesquisa sobre o universo jurídico. Na mesma época, começou a cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Lá ficou. Saiu primeiro mestre, em 2000, e depois doutora em Ciência Política, em 2004. Ainda assim, a hoje professora da Direito GV não abandonou de vez o Judiciário.

Com a defesa da dissertação Acesso à Justiça e Assistência Jurídica em São Paulo e, quatro anos depois, da tese Juizado Especial: Criação, Instalação e Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, firmou-se no cenário acadêmico, em especial nos estudos voltados à administração da Justiça. “Nunca cheguei a advogar. Tenho o meu número da OAB, mas ele é inativo. Acho que desde a faculdade eu já meio que sabia disso”, conta.

Em conversa com a Consultor Jurídico, Luciana conta que o que move suas pesquisas é olhar sempre o Judiciário em questão de eficiência e de gestão na Justiça, “sempre procurando um olhar que não se confundisse muito com o olhar tradicional do Direito”. No caso, olhar o fenômeno a partir da Ciência Política.

Coordenadora do programa de mestrado da Direito GV, Luciana acredita que a maior parte das escolas de Direito vem repetindo as velhas fórmulas. Como resultado, forma advogados especializados em litigar — o que contribui para o entupimento do Judiciário. “É um alto custo propor um modelo de educação jurídica diferente”, acredita.

A professora comentou a repercussão geral, que acredita não ser bem empregada. “Os ministros pegam os casos fáceis e onde não há controvérsia. Os casos que vêm sendo decididos por meio de repercussão geral não fazem muita diferença”, explica. Ao falar sobre os problemas do Judiciário, ela disse que “não é um problema processual, nem um problema de reforma do processo. Até temos alguns problemas processuais, mas eles são muito pontuais e as reformas que estão vindo, como a reforma da Lei da Ação Civil Pública e a reforma do Código de Processo Civil não vão resolver o sistema. A questão da gestão engloba tratar o Judiciário como um prestador de serviço público”.

Ao longo da entrevista, passou por diversos temas, como a greve do Judiciário Federal, que se desenrola desde 17 de outubro. Para ela, ocorre um jogo de empurra por parte do Legislativo de suas responsabilidades para o Judiciário. Ela assume o papel do parlamentar e solta o argumento mais empregado: “A culpa não é nossa, a culpa é da Presidente que não quer dar o aumento, porque olha, a gente aprovou a lei. Então, é um jogo que o próprio Legislativo dá as cartas”.

Leia a entrevista:

ConJur — Muita gente fala que o problema do Judiciário está na gestão. A senhora concorda com isso? Que reformas são necessárias?

Luciana Gross Cunha — Concordo. Não é um problema processual, nem um problema de reforma do processo. Até temos alguns problemas processuais, mas eles são muito pontuais e as reformas que estão vindo, como a reforma da Lei da Ação Civil Pública e a reforma do Código de Processo Civil, não vão resolver o sistema. A questão da gestão engloba tratar o Judiciário como um prestador de serviço público. É preciso definir critérios de qualidade. As metas definidas pelo Conselho Nacional de Justiça já são uma conquista, mas elas sozinhas não mudam. Essa é minha implicância com a questão da PEC do Peluso.

ConJur — Por quê?

Luciana Gross Cunha — Sinto muito, mas eu não sei onde, não sei qual é o indício de que uma vez aprovada a PEC, isso vai melhorar o tempo do processo. A proposta elimina uma parte que não é uma parte considerável, como, por exemplo, os Habeas Corpus. Desafoga o Supremo Tribunal Federal, mas o problema de demora do Judiciário como um todo não resolve. Pensando de uma forma mais ampla. Quando se fala em problema de gestão no Judiciário, eles tocam em três pontos: pouco dinheiro, não tem computador e não tem juízes. Nenhuma dessas três coisas vai resolver o problema do Judiciário. Quando se fala em informatização, se fala na troca do papel por uma planilha do Excel. Não se fala em integrar, por exemplo, Polícia Civil, Ministério Público e Poder Judiciário, ou Poder Judiciário e Ministério Público, ou primeira e segunda instância e Tribunais Superiores. A informatização não passa por essa discussão. Em termos de número de juiz por processo e por habitante, estamos um pouco defasados em relação aos outros países, mas temos grandes diferenças nacionais. Não é o número de juízes que vai melhorar o quadro. Se aumentar o número de juízes, pode resolver o problema para o próximo biênio, mas daqui a quatro anos a gente vai ter esse problema de novo.

ConJur — Depois tem a questão do dinheiro...

Luciana Gross Cunha — É mentira que falta orçamento. Comparativamente, nosso Judiciário é caríssimo e é o único do mundo que tem previsão orçamentária em lei. Ainda que o Legislativo e o Executivo tenham de aprovar esse orçamento, o espaço de negociação é muito pequeno, porque se tem um teto de 6% do PIB estadual. Para os Judiciários estaduais isso é muito dinheiro. O Judiciário de São Paulo tinha, em 2004, 58 mil servidores. Não é possível você gerenciar tudo isso se não tem plano de carreira, os salários são super baixos, você não tem nenhum estímulo e nenhuma gratificação. É onde a burocracia impera e emperra. De um lado há carreiras que precisam ser valorizadas e profissionalizadas e, de outro lado, tem a questão da logística. Não existe plano de logística dos tribunais. Nos Estados Unidos, a gente tem uma técnica de gerenciamento do processo pelo juiz. Ele tem uma equipe de assessores que são profissionais, remunerados e reconhecidos. Normalmente são jovens, bacharéis em Direito, que passam pelos tribunais, até para poder ter experiência jurídica, mas são cobrados. Enfim, é um trabalho meritocrático. Quando se fala em problema, em crise no Judiciário, não são reformas constitucionais que resolvem, nem reformas processuais. É choque de gestão. E é choque de gestão pública. O Judiciário ainda não percebeu que não dá para voltar atrás e ficar com o discurso de que não é prestador de serviço porque é um poder do Estado.

ConJur — Como conter a demanda que não para de crescer?

Luciana Gross Cunha — Essa é outra questão: nosso modelo de solução de conflito. A gente tem um modelo, que é o modelo tipicamente, vamos dizer assim, é um modelo republicano francês em termos de sistema Judiciário. O Judiciário é o único que detém o monopólio de solução de conflito no Estado. Isso faz com que, cada vez mais, eu tenha um maior número de processos sendo levados para o Judiciário porque não há nenhuma alternativa. Por isso existe um crescimento exponencial do número de processos. A sociedade vai ficando mais complexa, acontecem mais conflitos, só que só existe uma esfera para solucioná-los. Então, tem decisão do Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] indo parar no Judiciário que tem de rever a decisão tomada por uma agência regulatória. O Judiciário vai ver se foi seguido o devido processo legal, mas não dá para exigir que este princípio seja aplicado da mesma forma em todas as esferas de solução.

ConJur — O incentivo à conciliação diminui o número de ações que entram no Judiciário ou cria uma demanda que hoje está reprimida, por exemplo, como aconteceu nos Juizados Especiais?

Luciana Gross Cunha — Existem duas questões em torno da conciliação. Uma é como é que essa conciliação está sendo feita. A forma pela qual o Conselho Nacional de Justiça estimula essa conciliação, durante a semana da conciliação, é um problema, porque é o Judiciário fazendo conciliação e este não é papel dele. Esse é o papel do advogado, mas não do juiz. Ele é vítima desse sistema criado pelas escolas da magistratura e não tem como sair desse círculo vicioso de impor a conciliação. É uma falha do sistema como um todo. O caminho não é esse. Também não acho que isso tenha a ver com demanda reprimida. Quer dizer, o discurso que é feito e que foi feito com o Judiciário, com o Juizado Especial, era um discurso errado. Estudos preliminares mostram que no interior de São Paulo, você tem uma vara que é uma vara geral que atende todos os processos. Quando você especializa essa vara, criando, por exemplo, uma vara de Direito da Família, não há uma diminuição dos processo dessa vara judicial. O que acontece é o estímulo à entrada de processo, que passa a ser feita também na Vara de Família. Daí, porque o Juizado Especial não vinha resolvendo problemas da Justiça Comum, mas ele vinha estimular o reconhecimento do Judiciário como um monopólio de solução de conflito. Só que agora é uma porta diferente. A minha crítica é que hoje em dia ela já não é mais diferente do resto porque os processos demoram, você tem obrigação da presença do advogado, você importou o sistema da justiça normal, da justiça comum, para os Juizados Especiais. Os Juizados Especiais, hoje em dia, têm os mesmos problemas da justiça comum. Se começarmos a pensar na conciliação nesse formato dentro do próprio Judiciário, estaremos fazendo isso de novo. Temos que estimular a conciliação, mas é via advogado. É o advogado o grande agente dessa conciliação.

ConJur — Então o foco é outro?

Luciana Gross Cunha — É um paradoxo, porque o cliente quer ir ao Judiciário. Em uma reunião com a ministra Cármen Lúcia, ela contou que logo que começou a advogar, em Minas Gerais, ela atendeu uma pessoa e ela disse assim: “Olha, não vale a pena entrar no Judiciário.” O cliente virou e respondeu: “Mas, espera um pouco, você é advogada ou não? Você não está entendendo, eu quero entrar e por isso que eu vim aqui. Eu não quero me aconselhar, eu quero entrar no Judiciário.” É uma questão cultural.

ConJur — O Juizado Especial hoje tem problema na execução também, assim como a Justiça Comum?

Luciana Gross Cunha — A execução continua sendo um problema de todos. É aí que vem a questão sobre judicializar ou não. Não posso pensar em judicializar sem pensar na execução. Você vai entrar contra esse fulano na Justiça, mas ele não tem bens, o que você quer dele? Na verdade, muitas vezes se quer a vingança, e a forma de fazer vingança na modernidade, qual é? É tendo um mandado judicial. A Ação Civil Pública, por exemplo, foi um ganho e uma conquista enorme. Mas como eu executo uma decisão de Ação Civil Pública? O processo de execução dela é individual. O Judiciário individualiza muito as decisões e as ações. É muito difícil ter uma Ação Civil Pública procedente porque o juiz sabe que isso vai dar problema lá na frente. Quem vai ser o juiz que vai querer executar aquela sentença? Então, a execução é um problema, mas no Juizado Especial, o maior problema é a importação de procedimento da Justiça comum. Criaram-se critérios que obrigam a presença do advogado e com um ponto mais negativo ainda, que é, ao menos em São Paulo, a inexistência de juiz titular de Vara de Juizado Especial. O que isso quer dizer? Os juízes passeiam pelos juizados, mas eles não querem ficar lá. Criou-se também sistema recursal para o STJ, a quem cabe uniformizar as decisões dos colégios recursais dos Juizados Especiais. Está sendo levada para o STJ uma decisão lá de baixo, de compra de caneta BIC.

ConJur — Na PEC do Peluso, suponhamos que você comece a executar uma sentença e depois descubra que houve um erro ou que não era bem aquilo. Isso não é perigoso para a segurança jurídica?

Luciana Gross Cunha — Advogados penalistas dizem que vão fazer de tudo para que o cliente deles não entre nesse sistema carcerário que a gente tem hoje no Brasil, que é ingovernável e intenso. Entra aí uma questão de também olhar o sistema de Justiça de uma forma mais ampla, mas os juristas não gostam de fazer isso. Não gostam nem de tratar de Polícia Civil, que é parte de sistema de Justiça, nem tratar de política carcerária, que também faz parte do sistema de Justiça. Temos de pensar o modelo que construímos, que não é um modelo processual, mas sim institucional. Com a Reforma do Judiciário de 2004 [Emenda Constitucional 45], o STJ e o STF passaram a ser efetivamente a cúpula do Poder Judiciário. Ali aconteceu efetivamente um processo de centralização do tomador de decisões. Agora, por uma lei processual, por uma discussão de processo constitucional, eles querem fazer com que se restrinja o número de esferas revisoras. O argumento do ministro Peluso é que não existem, ou existem muito poucos erros judiciários. Só que espera um pouquinho: um erro do Judiciário não é um erro qualquer.

ConJur — E se esse erro for penal?

Luciana Gross Cunha — Se for penal é mais complicado ainda. E aí qual é o poder que os próprios tribunais têm de rever e tomar decisões efetivas nesse sentido? Temos de pensar se a PEC do Peluso, e é isso que eu acho que não vai acontecer, descentraliza o sistema. O Supremo Tribunal Federal, principalmente por conta da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral, ainda concentra. Eles estão falando que isso diminui o tempo. Mas vai diminuir o tempo em detrimento da certeza do Direito? Não acho que seja em relação à segurança jurídica, e sim em relação a essa certeza, porque se formos pensar em termos federativos, é bom que o Rio de Janeiro tome uma decisão que é diferente do estado de São Paulo. Existem estados em que questão do devido processo legal, da segurança, do papel do advogado são mais urgentes do que em outros. Quero ser convencida, mas os argumentos que me mostram ou que me apontam a favor da PEC do Peluso, não me convencem de que isso vai aumentar a segurança jurídica, diminuir o tempo do processo, garantir uma efetividade da Justiça em termos de impunidade. De novo: o problema não está aí. Parece mais, como ele é o presidente do Supremo Tribunal Federal, que ele tem que ter uma política. Ele não tem política para o CNJ porque ele é contrário ao papel do CNJ na intervenção das corregedorias e nos processos disciplinares nos tribunais estaduais. O grande projeto do Gilmar Mendes estava no CNJ. Então, ele tem que ter um projeto, quase como um político. E qual o projeto dele? É a PEC do Peluso. Até porque isso vai reduzir um pedaço dos processos que chegam até lá que é muito pequeno dentro do número total de processos do Supremo Tribunal Federal.

ConJur — O STF tem um papel político?

Luciana Gross Cunha — Tem. Não só o STF, mas o Judiciário inteiro. E isso é culpa da Constituição. Está na origem do nosso modelo de Judiciário, que tem inspiração norte-americana. O Judiciário é um poder político desde sempre porque ele faz o controle constitucional.

ConJur — Isso chega a ser negativo?

Luciana Gross Cunha — Não, não acho que seja negativo. Óbvio que tem uma discussão sobre legitimidade e sobre a qualidade do resultado dessa decisão. É preciso deixar claro duas coisas. Um, a legitimidade do Poder Judiciário é diferente da legitimidade do Executivo e do Legislativo, mas é democrática. A democracia prevê diversas formas de legitimidade. Uma delas é a representação por meio de partidos políticos, da eleição para preenchimento de cargos no Executivo e no Legislativo e a outra é uma legitimidade que se dá via Constituição. Então, é a Constituição Federal que dá legitimidade ao Poder Judiciário de fazer o controle da constitucionalidade, certo? Portanto, ele é um poder político e cabe a ele interferir. Agora, podemos fazer um estudo para analisar se o Judiciário, no exercício desta função política, vem produzindo bens públicos e se vem atendendo a interesses públicos ou não. Não é uma legitimidade que vem da eleição. Por isso o Judiciário tem controles e constrangimentos processuais. No Legislativo e no Executivo, qual controle é feito? Via eleição. É via sistema partidário, que controla os representantes do povo. No Judiciário, os controles se dão por meio dos princípios processuais. Podemos questionar a qualidade desse constrangimento, mas dizer que isso é ilegítimo e que ele é incompetente em termos de competência constitucional não faz nenhum sentido. Esse é o dilema da democracia e do Estado democrático de Direito. Pode ter conteúdos que eu não concordo, agora por que eu aceito? Porque o procedimento é legítimo. Política tem uma conotação negativa e pra mim isso tem relação com a forma como os juristas traduziram Montesquieu dentro da tradição jurídica brasileira. Tem um erro de tradução. Montesquieu fala em juiz boca da lei? Fala, mas ele só fala isso porque antes ele decide a separação de poderes de outro jeito. Ele não decide a separação de poderes pela função. Ele fala assim: “Os três poderes têm a mesma função, que é a de dirimir conflitos. O que diferencia um do outro é o objeto desse conflito. Então, o Executivo decide, soluciona conflito envolvendo o que ele chama de “direito das gentes”, que é o Direito Internacional. O Legislativo decide conflitos que envolvem a relação entre o Estado e governados. E o Judiciário decide conflitos que envolvem os particulares. Como o Judiciário é o poder político, ele é a boca da lei. Mas ele não está dizendo que não é poder político, ele não está dizendo que não existem regras de interpretação.

ConJur — Professora, vamos falar sobre a forma de indicação dos ministros para o Supremo? A ministra Rosa Maria agora acabou de sair do Tribunal Superior do Trabalho e reconheceu que não tem um conhecimento plural do Direito pelo fato de ter ficado muito tempo lá. Isso é bom?

Luciana Gross Cunha — Pois é, estamos em um momento que precisamos discutir isso. Não acho que devemos abandonar este modelo de indicação política. O problema não está aí porque o STF é, de fato, um órgão político. É o mais político dos órgãos do Judiciário porque a função dele mais importante é a interpretação constitucional ou deveria ser a principal função dele. Agora, precisamos discutir como se dá esse procedimento. Assisti a um pedaço da sabatina do Senado e acho que essa sabatina é diferente das outras.

ConJur — Você diz a sabatina da ministra Rosa Maria?

Luciana Gross Cunha — Da Rosa Maria. Em primeiro lugar, foram muitos votos contrários. E, segundo, foram feitas perguntas muito substanciais. Óbvio que isso não aconteceu porque os senadores melhoraram a sua qualidade de argumentação, mas sim porque essa ministra vai chegar para decidir questões cruciais. A principal delas é o mensalão. Agora, se essa é uma escolha política, por que isso não é discutido pela mídia? Por que não se fala quem são os candidatos? Por que a vida deles não é exposta como acontece nas eleições para o cargo de governador e de prefeito, por exemplo? Acho que aí existe um certo silêncio da sociedade. O Tribunal Superior do Trabalho é capaz de produzir ministros para o Supremo Tribunal Federal. Isso não é um problema. Eu acho que pode até ser um ganho em termos de discussão de conteúdo das decisões. A Justiça do Trabalho é uma Justiça pouco estudada. Mas ela falhou quando não quis assumir nenhuma posição na sabatina porque ela não conhece o assunto. O STF não é lugar para se aprender. Caso eu fosse ré em processo ou autor em um processo, não gostaria que ela aprendesse com o meu processo, certo? Só quero que ela julgue o meu processo depois que ela tiver aprendido.

ConJur — É a mesma história de ser operado por um médico que está fazendo aquele tipo de cirurgia pela primeira vez?

Luciana Gross Cunha — Mas o médico residente tem um supervisor. No STF não tem supervisão, então acho que a gente tem um problema aí que é um problema: o que os presidentes estão considerando notório saber jurídico. Acho um problema essa questão da blindagem dos candidatos. Quem eram os outros? Por que os outros não foram escolhidos? Por que ela foi a escolhida em detrimento de outros? Parece que ficou um pouco claro que a presidente Dilma queria nomear uma mulher. Está bom, mas era só essa candidata? Tinha outras? Por que não foram as outras? Foi por que as outras não quiseram? Esse tipo de informação é uma informação democrática. Precisamos saber. É um processo democrático, mas ele acaba sendo quase que uma indicação de ministro de Estado, que cabe exclusivamente ao presidente da República. Uma vez que o ministro assume uma função pública, a vida privada dele, diferente do que a presidente Dilma pensa, é pública também.

ConJur — E esses ministros são influenciáveis pelo presidente que o indica?

Luciana Gross Cunha — Não acho que eles sejam absolutamente influenciáveis no conteúdo das suas decisões pelo presidente que o indica. Existem estudos que mostram que o fato de o Lula ter indicado determinados ministros não faz com que esses ministros votem a favor das políticas públicas ou das políticas do Executivo Federal. O STF sabe lidar com isso melhor do que o resto do Judiciário. Não por acaso ele faz, hoje em dia, audiência pública dentro do próprio STF. Mas se ele sabe lidar com essa questão política por que não lidar desde o começo no momento de indicação?

ConJur — O Supremo vem ganhando mais força na vida das pessoas. Dá pra perceber que assuntos bem importantes são levados até ele. Como a senhora avalia o papel do STF hoje?

Luciana Gross Cunha — Isso é natural e normal — não vejo como uma patologia da democracia brasileira, porque, como eu já disse, o Judiciário é um poder político e o STF é o mais político de seus órgãos. Agora, existem duas questões que precisam ser olhadas com cuidado. Quando o Legislativo entra nessa dança é um problema. O primeiro caso que me chamou a atenção foi a votação da CPMF. A oposição, o Tasso Jereissati, subiu à tribuna do plenário do Senado e falou assim: “Se vocês aprovarem a continuidade da CPMF, a ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] no Supremo já está pronta”. Quer dizer, é o Legislativo dançando conforme a música tocada pelo STF. Ele fala assim: “Não, essa decisão aqui eu não sou capaz de criar consenso e de produzir decisão dentro do Legislativo. Então, eu passo isso para o STF".

ConJur — Por que isso não acontece no Legislativo?

Luciana Gross Cunha — Existem argumentos fracos: porque o Legislativo é menos representativo, ou porque existe crise política, ou porque tem corrupção. Acho que é muito mais porque o Legislativo aprendeu que é mais fácil transferir a responsabilidade para a tomada de certas decisões para o Supremo do que assumir essa responsabilidade. Foi exatamente o que aconteceu com a Lei da Ficha Limpa. Todo mundo falava: “Tem um questionamento importante sobre a constitucionalidade dessa lei, mas era aberto para jurisdição, tinha clamor público, tinha questão de que era uma iniciativa popular...”. O que o Congresso Nacional fez? Aprovou. O que o presidente fez? Sancionou e pensou assim: “Deixa o Supremo resolver isso”. Ou seja, ele transfere o ônus negativo para o Supremo e como os ministros não são eleitos, o Supremo cuida disso. É a mesma coisa que acontece agora com a reforma política. Por que quem está fazendo a reforma é o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal? Porque o custo dessa reforma política no Congresso Nacional é muito alto para os deputados. Eles transferem a responsabilidade e essa e é uma transferência consciente. O Legislativo percebeu que manipula a responsabilidade política. É um jogo. Apesar de parecer que o Executivo controla a pauta e o jogo do presidencialismo de coalizão, quem comanda é o Legislativo.

ConJur — Professora, fale, por favor, sobre as pesquisas que tem em andamento?

Luciana Gross Cunha — Temos três pesquisas importantes em andamento. A principal pesquisa é o "Índice de Confiança na Justiça Brasileira", que mede trimestralmente a percepção da população com relação ao funcionamento do Poder Judiciário e da Justiça como um todo. É uma pesquisa que está em campo desde 2009. São publicados quatro relatórios por ano. É feita em sete estados do Brasil: São Paulo, Rio, Rio Grande do Sul, Minas, Pernambuco, Bahia e Distrito Federal. Olhamos aí, não só a avaliação do Judiciário como prestador de serviço, mas também como é que a população se comporta frente ao Judiciário. Ou seja: qual é a disposição das pessoas de acionar o Judiciário para resolver seus conflitos no dia a dia? O próximo relatório sai em fevereiro do ano que vem, referente ao quarto trimestre de 2011. É um projeto grande, a longo prazo.

ConJur — A segunda, qual é?

Luciana Gross Cunha — Tem a pesquisa "STF e o sistema político brasileiro", feita no Núcleo de Constituição e Justiça, que é coordenado por mim e pelo professor Dimitri Dimoulis. Estamos olhando o Supremo Tribunal Federal e seus padrões de decisão durante dois anos, de 2007 a 2009. Esse período coincide com o tempo em que Carlos Alberto Menezes Direito foi ministro do STF e não comporta nenhuma alteração no plenário. E aí, a gente está olhando todas as decisões no plenário para ver qual é o padrão de decisão. É um projeto em conjunto com os alunos do mestrado. Estamos montando um banco de dados que provavelmente estará pronto em fevereiro do ano que vem, também.

ConJur — E a teceira?

Luciana Gross Cunha — É um projeto capitaneado pela Law School, em Harvard, que analisa a globalização da advocacia nas economias emergentes. Estamos de olho no Brasil, na China e na Índia. Analisamos a educação jurídica, a regulação do ambiente profissional, o papel das entidades reguladoras e os grandes escritórios de advocacia, como esses escritórios estão organizados, como se comporta a elite jurídica, se essa elite jurídica tem diferença com os juristas tradicionais ou não, qual é a diferença que existe e como os departamentos das grandes empresas se estruturam em termos jurídicos. Aqui no Brasil existe uma tendência, que nos Estados já é realidade, de os departamentos jurídicos das grandes empresas serem um grande atrativo para os novos advogados, que estão no momento inclusive de virarem sócios de grandes escritórios, mas preferem ir para as empresas. É o surgimento de uma nova arena de atuação forte do advogado, com salários muito competitivos com grandes escritórios.

ConJur — E por que isso acontece?

Luciana Gross Cunha — O primeiro fenômeno que verificamos é o peso da globalização. Essas mpresas têm negócios no exterior e elas negociam, elas atuam, por exemplo, em câmaras internacionais de arbitragem, e o negócio dos grandes escritórios passou a ser muito competitivo. Então, vale mais a pena você ter um grande advogado entre os seus funcionários. Esse grande advogado aparece com status diante dos colaboradores, com papéis fundamentais. Então, de um lado você tem a globalização e do outro você uma maior profissionalização dos escritórios. Os escritórios deixaram de ser familiares. Essa é uma tendência percebida desde a década de 1990. Os nossos cursos de Direito não ensinam ao estudante de Direito a habilidade para lidar com esses clientes. Assim, as empresas passam a ser um grande atrativo porque nela não é preciso lidar com o cliente. A instituição é o seu próprio cliente: você tem que brigar pelos interesses dela. Também existe a percepção de que nas empresas você teria uma qualidade de vida melhor do que nos grandes escritórios. Tem uma questão também pessoal e individual em termos de vida profissional. Os departamentos jurídicos começam a ser competitivos em termos de salários, mas eles têm uma maior atratividade exatamente porque eles garantem uma qualidade de vida melhor para esses advogados.

ConJur — Os números do Índice de Confiança na Justiça Brasileira são bons? Como é a confiança da população?

Luciana Gross Cunha — Os números são ruins, mas eu já fui mais pessimista. Hoje em dia, apesar da avaliação ser ruim, temos que começar a criar critérios. Ou seja, fazer a pesquisa e acompanhar esses números de uma forma sistemática e dentro de um grande espaço temporal. Uma informação essencial é olhar a eficiência da instituição e se a ela está fazendo ou não diferença. Estamos em um momento no qual precisamos começar a interpretar esses números no seguinte sentido: não só no que eles valem efetivamente para o funcionamento do Judiciário, mas também como o Judiciário vem trabalhando com essa percepção no sentido de mudar a gestão da justiça. A grande novidade nesse cenário é o Conselho Nacional de Justiça e o papel da Corregedoria. Nesse semestre o debate que aconteceu em torno da Eliana Calmon, em termos de atuação da Corregedoria nos casos envolvendo corrupção no Judiciário de uma forma geral, é absolutamente saudável, necessário e mostra os pontos de resistência e facilidade que o CNJ tem em lidar com essa questão sobre o Judiciário, que é uma questão estranha ao Judiciário, diferente do que acontece no Legislativo e no Executivo.

ConJur — Por que é diferente?

Luciana Gross Cunha — A Lei de Improbidade Administrativa é de 1992, mas os juízes não respondem por ela. Eles continuam respondendo pela Lei Orgânica da Magistratura. Esse padrão tem que mudar. As demandas da democracia não aceitam mais que isso seja assim. O Judiciário é um poder que foi tão exposto a partir de 1988, mas que não precisa prestar contas do que faz? O serviço tem que ser eficiente, transparente, com baixo custo, produzindo um resultado satisfatório. De outro lado, tem o papel do Judiciário como resistência à defesa dos Direitos, no sentido de que ele é um poder do Estado, no qual você pode reivindicar direitos de uma forma direta. Apesar das pessoas criticarem e terem uma visão negativa do Judiciário, elas querem esse Poder.

ConJur — Então é uma relação de amor e ódio?

Luciana Gross Cunha — É. Tem um paradoxo aí. Os dados estão mostrando que isso não é mais uma sensação ou um achismo dos pesquisadores ou dos juristas. Isso é real. A pesquisa mostra isso efetivamente.

Marília Scriboni é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 25 de dezembro de 2011

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